O som da dor do poeta como verdade única na poesia de Serra Azul
por Paiva Neves
Analisar criticamente uma obra de arte não é tarefa fácil,
principalmente quando o autor analisado é um amigo. Torna-se ainda mais árdua a
análise quando o autor em questão partiu para outro plano, já que há uma tendência
no pós-morte de nos tornarmos benevolentes em nossa apreciação a respeito da
obra dos que se foram.
Diante disso, para não cometer deslizes favoráveis, motivado pelos laços
de afetividade com o autor que me proponho a comentar, proponho aqui uma
reflexão criteriosa da arte, da escrita poética, e não do homem, da pessoa
humana, do ser interacionista que foi Luiz Eduardo Serra Azul.
Piúdo, como era popularmente conhecido, nasceu, viveu e foi sepultado em
Pajuçara, distrito de Maracanaú, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza.
Foi poeta, compositor, humorista e, sobretudo, um sobrevivente do holocausto
social a que é condicionada a vivência nas periferias das grandes cidades do
Brasil. Serra Azul viveu para a arte, mas não viveu de sua arte. Para garantir
sua sobrevivência, vendia frutas no CEASA, local em que também vendias seus
folhetos, livros e CDs de piadas.
O poeta encantado no começo deste mês, tanto do seu espaço de morada e
trabalho, como também nos meios culturais, ficou conhecido como o multiartista,
o versátil contador de piadas, o desafiador da esperteza intelectiva das
pessoas com charadas e adivinhas, o compositor autodidata que, mesmo sem tocar
instrumentos musicais, expressava o sentimento com canções. Para além de tudo
isso, era um grande cordelista, autor de alguns e bons folhetos de cordel, nos
quais versava sobre temáticas regionalistas, lendas urbanas e terror.
No entanto, há uma outra faceta de sua poesia que também precisa ser
conhecida, uma vez que, de certa forma, veio a ser ofuscada pela veia
humorística do Serra Azul.
Piúdo teve trabalhos poéticos de sua autoria publicados pela primeira
vez a partir de 1999, com as edições do jornal Aporta cultural dos aletófilos
e da Antologia da Sociedade dos poetas e escritores de Maracanaú, livro
publicado pela Sopoema. Somente em 2017, saiu uma edição de seu livro Veredas
poéticas, reunindo grande parte de sua obra em versos sem as amarras da
rima, da métrica e das estrofes hegemônicas do cordel. Afora esse livro, Piúdo
publicava, quase que diariamente, sua produção literária nas redes sociais.
São versos de um rico teor sentimental, recheados de lirismo, de
saudade, de crítica social e com muito fundo filosófico. Poemas curtos ou
longos, mas com profundo sentimento de pertencimento a um mundo anacrônico do
ponto de vista da humanização das relações, devendo, assim, ser transformado.
Nesse caldeirão social, em que fervilha o ódio, a discórdia, o "querer
ter" a qualquer preço, o poeta enxergou muralhas invisíveis, porém
sentidas. Como gostava de enfatizar, essas muralhas, muito mais do que aquelas
feitas de barro, cimento ou ferro, mostram-se como barreiras sociais, cujo
fundamento é o egoísmo e a ausência de compaixão, separando as figuras humanas,
e criando figuras fantasmagóricas, marginalizadas, desprezadas pelo sistema hegemônico
devorador da fraternidade.
A poesia serraazuniana dialoga com o presente, com o mundo vivido, com o
concreto. Trata-se de um diálogo com profundo enraizamento no solo da Filosofia,
com a qual, em algum momento de seu aprendizado humano, o poeta deve ter
interagido. Assim é que, em seu poema “Muralhas”, ele descreve aqueles que
vivenciam as relações sociais e que permeiam visões de exclusão sob a égide das
tais muralhas invisíveis e fantasmagóricas como sendo "figuras com as
cores do egoísmo".
O poeta, mesmo vivenciando o caos social, tem a consciência de sua
superação ao afirmar que "no submundo da mente/há uma pureza real/de uma
nitidez invisível". Interessante perceber a relação desses versos com o
conceito platônico de conquista do mundo ideal, uma vez que Platão advogava a
ideia de que o caos é irreal e que o mundo real, o mundo da pureza, do idílio
está no mundo das ideias, no mundo espiritual, o qual somente os puros, através
das ideias terão acesso.
Ainda seguindo essa trilha poética filosófica, o poeta da Pajuçara
retorna no poema citado à ideia platônica, provavelmente sem o saber, ao afirmar
em seus versos que "o que seria das sombras/sem a luz”, uma clara relação
com o Mito da caverna desenvolvido pelo filósofo grego. Nesse processo, toca
ainda no referido poema a dialética tanto platônica quanto hegeliana em versos
como "o que seria do homem/sem o amor" ou "o que seria da
rosa/sem o espinho que a fustiga"?
À primeira vista, poderão parecer simples interrogações poéticas frente
às inquietações da subjetividade. No entanto, fica transparente a clara noção
que tem o poeta acerca da luta dos contrários e da superação do velho pelo
novo. O poeta, mesmo angustiado pela mesmice, não abandona a trincheira, e, de
forma categórica, afirma no poema em análise que "há uma luta
incessante/do poeta com a mentira/com a ganância e o ódio".
Todavia, como tudo na vida tem seus graus de dificuldades e que é justo
que façamos de nosso mister um ofício de resistência, Piúdo, mesmo ciente dos
percalços, defendeu em outro poema em estudo que "quando o tempo
revela/nossa insignificância/nos afoga na procela/da insana ignorância" (poema
“Surpresas”).
Com a certeza da necessidade do "bom combate", o poeta
finaliza outro poema aqui comentado com a expressão da esperança de que "[mesmo]
quando a terra for o meu véu/com o peso necessário/e o sonho de ir pro
céu/tatuar o imaginário/a missão será cumprida" (poema “Psicodelismo).
Sim, poeta Luiz Eduardo Serra Azul, nós, os amantes da poesia, das artes
e, na concepção de Paulo Freire, de uma sociedade humanizada, temos absoluta
convicção que sua missão tanto poética quanto humana foi realizada.
Fortaleza, 16 de junho de 2020
Paiva Neves, Pedagogo, editor e Poeta. Mestrando em
Ciências da Educação.
Bela análise. Por seu texto, pode-se ver o quanto Serra Azul foi subestimado. Pelo menos, fica o conforto de ter deixado uma obra a ser visitada pelos pesquisadores e pelos amantes da cultura popular.
ResponderExcluirQuantos Serras Azuis necessitam de espaço. Muita arte é produzida na periferia e com qualidade. Serra Azul precisa ser publicado para além do cordel.
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