terça-feira, 16 de junho de 2020

A poesia filosófica de um poeta popular

          O som da dor do poeta como verdade única na poesia de Serra Azul

  por Paiva Neves
   
Analisar criticamente uma obra de arte não é tarefa fácil, principalmente quando o autor analisado é um amigo. Torna-se ainda mais árdua a análise quando o autor em questão partiu para outro plano, já que há uma tendência no pós-morte de nos tornarmos benevolentes em nossa apreciação a respeito da obra dos que se foram.
Diante disso, para não cometer deslizes favoráveis, motivado pelos laços de afetividade com o autor que me proponho a comentar, proponho aqui uma reflexão criteriosa da arte, da escrita poética, e não do homem, da pessoa humana, do ser interacionista que foi Luiz Eduardo Serra Azul.
Piúdo, como era popularmente conhecido, nasceu, viveu e foi sepultado em Pajuçara, distrito de Maracanaú, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza. Foi poeta, compositor, humorista e, sobretudo, um sobrevivente do holocausto social a que é condicionada a vivência nas periferias das grandes cidades do Brasil. Serra Azul viveu para a arte, mas não viveu de sua arte. Para garantir sua sobrevivência, vendia frutas no CEASA, local em que também vendias seus folhetos, livros e CDs de piadas. 
O poeta encantado no começo deste mês, tanto do seu espaço de morada e trabalho, como também nos meios culturais, ficou conhecido como o multiartista, o versátil contador de piadas, o desafiador da esperteza intelectiva das pessoas com charadas e adivinhas, o compositor autodidata que, mesmo sem tocar instrumentos musicais, expressava o sentimento com canções. Para além de tudo isso, era um grande cordelista, autor de alguns e bons folhetos de cordel, nos quais versava sobre temáticas regionalistas, lendas urbanas e terror.
No entanto, há uma outra faceta de sua poesia que também precisa ser conhecida, uma vez que, de certa forma, veio a ser ofuscada pela veia humorística do Serra Azul.
Piúdo teve trabalhos poéticos de sua autoria publicados pela primeira vez a partir de 1999, com as edições do jornal Aporta cultural dos aletófilos e da Antologia da Sociedade dos poetas e escritores de Maracanaú, livro publicado pela Sopoema. Somente em 2017, saiu uma edição de seu livro Veredas poéticas, reunindo grande parte de sua obra em versos sem as amarras da rima, da métrica e das estrofes hegemônicas do cordel. Afora esse livro, Piúdo publicava, quase que diariamente, sua produção literária nas redes sociais.
São versos de um rico teor sentimental, recheados de lirismo, de saudade, de crítica social e com muito fundo filosófico. Poemas curtos ou longos, mas com profundo sentimento de pertencimento a um mundo anacrônico do ponto de vista da humanização das relações, devendo, assim, ser transformado. Nesse caldeirão social, em que fervilha o ódio, a discórdia, o "querer ter" a qualquer preço, o poeta enxergou muralhas invisíveis, porém sentidas. Como gostava de enfatizar, essas muralhas, muito mais do que aquelas feitas de barro, cimento ou ferro, mostram-se como barreiras sociais, cujo fundamento é o egoísmo e a ausência de compaixão, separando as figuras humanas, e criando figuras fantasmagóricas, marginalizadas, desprezadas pelo sistema hegemônico devorador da fraternidade.
A poesia serraazuniana dialoga com o presente, com o mundo vivido, com o concreto. Trata-se de um diálogo com profundo enraizamento no solo da Filosofia, com a qual, em algum momento de seu aprendizado humano, o poeta deve ter interagido. Assim é que, em seu poema “Muralhas”, ele descreve aqueles que vivenciam as relações sociais e que permeiam visões de exclusão sob a égide das tais muralhas invisíveis e fantasmagóricas como sendo "figuras com as cores do egoísmo".
O poeta, mesmo vivenciando o caos social, tem a consciência de sua superação ao afirmar que "no submundo da mente/há uma pureza real/de uma nitidez invisível". Interessante perceber a relação desses versos com o conceito platônico de conquista do mundo ideal, uma vez que Platão advogava a ideia de que o caos é irreal e que o mundo real, o mundo da pureza, do idílio está no mundo das ideias, no mundo espiritual, o qual somente os puros, através das ideias terão acesso.
Ainda seguindo essa trilha poética filosófica, o poeta da Pajuçara retorna no poema citado à ideia platônica, provavelmente sem o saber, ao afirmar em seus versos que "o que seria das sombras/sem a luz”, uma clara relação com o Mito da caverna desenvolvido pelo filósofo grego. Nesse processo, toca ainda no referido poema a dialética tanto platônica quanto hegeliana em versos como "o que seria do homem/sem o amor" ou "o que seria da rosa/sem o espinho que a fustiga"?
À primeira vista, poderão parecer simples interrogações poéticas frente às inquietações da subjetividade. No entanto, fica transparente a clara noção que tem o poeta acerca da luta dos contrários e da superação do velho pelo novo. O poeta, mesmo angustiado pela mesmice, não abandona a trincheira, e, de forma categórica, afirma no poema em análise que "há uma luta incessante/do poeta com a mentira/com a ganância e o ódio".
Todavia, como tudo na vida tem seus graus de dificuldades e que é justo que façamos de nosso mister um ofício de resistência, Piúdo, mesmo ciente dos percalços, defendeu em outro poema em estudo que "quando o tempo revela/nossa insignificância/nos afoga na procela/da insana ignorância" (poema “Surpresas”).
Com a certeza da necessidade do "bom combate", o poeta finaliza outro poema aqui comentado com a expressão da esperança de que "[mesmo] quando a terra for o meu véu/com o peso necessário/e o sonho de ir pro céu/tatuar o imaginário/a missão será cumprida" (poema “Psicodelismo).
Sim, poeta Luiz Eduardo Serra Azul, nós, os amantes da poesia, das artes e, na concepção de Paulo Freire, de uma sociedade humanizada, temos absoluta convicção que sua missão tanto poética quanto humana foi realizada.

Fortaleza, 16 de junho de 2020
Paiva Neves, Pedagogo, editor e Poeta. Mestrando em Ciências da Educação.

2 comentários:

  1. Bela análise. Por seu texto, pode-se ver o quanto Serra Azul foi subestimado. Pelo menos, fica o conforto de ter deixado uma obra a ser visitada pelos pesquisadores e pelos amantes da cultura popular.

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    1. Quantos Serras Azuis necessitam de espaço. Muita arte é produzida na periferia e com qualidade. Serra Azul precisa ser publicado para além do cordel.

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